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Superagui: 27 anos de incertezas

“Ainda não ‘tamo’ ciente de tudo o que que pode acontecer no final, sabe? ‘Tamo’ batalhando pra descobrir o que é um plano de manejo. Eu sei que é fazer o controle de alguma coisa, né?”, diz Mauro Gonçalves Mendes, presidente da Associação de Moradores da Barra do Superagui, comunidade ao redor do Parque Nacional do Superagui, uma das 886 unidades de conservação do Brasil.

O parque, criado em 1989, está à beira de completar três décadas de existência ainda sem a implementação de seu plano de manejo: documento que orienta as atividades que podem ser realizadas dentro do parque e que, por consequência, interfere no modo de vida tradicional dos moradores da ilha. Segundo o Ministério do Meio Ambiente (MMA), o prazo máximo para a implementação deste documento é de cinco anos após a criação de uma unidade de conservação, uma vez que é ele que determina como se dá o uso dos recursos naturais, ou seja, limita como os moradores farão uso da natureza à sua volta, o que põe em discussão a manutenção do modo de vida tradicional e as fontes de sobrevivência destas pessoas, que retiram da floresta e do mar o seu sustento.

Neste sentido, a pesca, a agricultura e o extrativismo de subsistência fazem parte das atividades que compõem a identidade de quem vive no Superagui, atividades que deveriam estar sendo contempladas pelo plano de manejo a fim de preservar as práticas

tradicionais e culturais. Atualmente, a atuação e presença do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), órgão responsável pela gestão da unidade, divide a percepção dos moradores. “Depois da criação do parque nacional, as pessoas que plantavam roças não puderam mais, porque pra elas plantarem mandioca, elas tinham que desmatar… e isso foi proibido, por mais que fosse somente para elas viverem”, diz Creusa Maria Gomes, de 56 anos.

Já para Antonio Cardoso, morador da ilha, o costume das roças, por exemplo, foi deixado de lado muito tempo antes da instalação do parque. “Nós nos rebaixamos. O homem se rebaixou. Não quis mais plantar, mas não por causa do ICMBio. Se eles chegassem para fiscalizar ainda ajudava e comia uma fruta com nós”, contrapõe. Visão esta que é reforçada pelo instituto: “Na época de instalação do plano de manejo, era nítido o declínio dessa prática, as pessoas não plantavam mais e independentemente à construção do plano de manejo, foi realizado um pedido ao MOPEAR (Movimento dos Pescadores Artesanais do Paraná) para que eles fizessem um levantamento para quantificar as pessoas que possuíam roças e as que queriam continuar plantando, mas isso nunca foi entregue”, diz Guadalupe Vivekananda, ex-chefe do Parque Nacional do Superagui e atual voluntária.

PARQUE NACIONAL?

” Parques Nacionais são áreas destinadas à preservação dos ecossistemas naturais e sítios de beleza cênica. O parque é a categoria que possibilita uma maior interação entre o visitante e a natureza, pois permite o desenvolvimento de atividades recreativas, educativas e de interpretação ambiental, além de permitir a realização de pesquisas científicas. “

PLANO DE MANEJO?

” O plano de manejo é um documento consistente, elaborado a partir de diversos estudos, incluindo diagnósticos do meio físico, biológico e social. Ele estabelece as normas, restrições para o uso, ações a serem desenvolvidas e manejo dos recursos naturais, seu entorno (….), visando minimizar os impactos negativos sobre o parque nacional. “

MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE

Ainda segundo os representantes do ICMBio, enquanto as leis ambientais se mantiverem genéricas, o modo de vida tradicional dos moradores é assegurado, por mais que a interpretação possa ser ambígua, uma vez que legalmente é proibida a extração dos recursos naturais. Tal contradição permite diferentes entendimentos da lei, mas segundo o chefe do parque nacional do Superagui, isso legítima, de certo modo, as práticas tradicionais de apropriação dos recursos naturais quando ela estiver pautada no “bom senso”. “O problema é quando tentam estipular limites para as atividades. Se tentarem estipular um limite anual máximo para a extração de madeira, por exemplo, o modo de vida tradicional é descaracterizado, uma vez que todos irão reivindicar esse direito, muitas vezes para uso comercial e não de subsistência”, diz Marcelo Chassot Bresolin, atual chefe do parque.

Atualmente, o documento, que teve seu início somente em 2012

devido a trâmites legais que o atrasaram, ainda não tem previsão para ser implantado e segue embargado pela Justiça Federal. Em 2015, representantes do MOPEAR entraram com uma ação civil pública contra o ICMBio, alegando a falta de participação comunitária na elaboração do documento e barraram sua oficialização. O pedido, elaborado pela Defensoria Pública do Paraná, diz que há “violações dos direitos humanos praticados pelo ICMBio durante a elaboração do plano”, e que ele “coloca em risco a existência das comunidades tradicionais formadas por esses povos”.

O instituto, por outro lado, diz que as comunidades foram sim ouvidas em “conselhos deliberativos” que aconteceram de maneira sistemática na ilha, inclusive na Barra do Superagui, e que as demandas da comunidade foram contempladas. Representantes do MOPEAR foram procurados diversas vezes, mas optaram por não se pronunciar oficialmente para esta reportagem.

Especulação imobiliária põe em risco comunidades tradicionais do Superagui

Você está precisando de dinheiro. Um sujeito bem apessoado vem de uma terra distante oferecendo uma boa quantia pelo seu lugar: o pedaço físico da história que imprime saberes típicos das plantas utilizadas para cura de uma enfermidade, o lugar em que a musicalidade de uma dança tradicional é passada de geração em geração, a terrinha que traz consigo a história, que dia após dia marca a trajetória da comunidade que você vive. E aí? O que você faz? Vende?

A especulação imobiliária ocorre quando um espaço vira objeto de precificação por conta dos benefícios associados a um terreno. Localização, facilidades e infraestrutura são alguns pontos que agregam valor a um determinado lugar. Antes da instituição do Parque Nacional do Superagui, a ilha havia sido tomada por especuladores. Casas de veraneio eram vistas em toda parte e, com isso, a cultura popular e o modo de vida tradicional era colocado em ameaça. “O que causou muito impacto quando, na época IBAMA e hoje, o ICMBio chegou na ilha, foi ver que uma das vilas já estava cheia de casas de veraneio, que os moradores estavam

vendendo os terrenos sem qualquer critério”, diz Vivekananda. Ela ainda aponta que os valores exatos da venda dos imóveis para pessoas de fora nunca foram revelados, mas relatos apontam que acontecem por valores irrisórios na maioria das vezes. “Algumas últimas vendas que ocorreram clandestinamente disseram que foi por dez mil reais”, aponta.

Este controle das pessoas que entram para viver na ilha gera conflitos entre as gestões do parque e os moradores, revelando ambiguidades. Segundo o pescador e morador do Superagui, Marco Antônio Athanasio Pires, de 46 anos, ao mesmo tempo em que frear a venda de moradias para turistas impede que o morador acabe se tornando empregado e não se sinta dono do seu espaço, isso impede que a ilha cresça. “Se vender terreno aqui, o invasor de fora se torna dono. Com a ilha do mel já aconteceu. Lá o nativo vira empregado, trabalha para o pessoal que tem lanchonete, pousada de [pessoas de] fora… eles praticamente não pescam mais. Aqui até para você construir uma casa você precisa ter a autorização do ICMBio”, diz.

“Se vender terreno aqui no Superagui, o invasor de fora se torna dono e o morador empregado.”

Marco Athanasio Pires, pescador.

A especulação imobiliária não é um problema exclusivo da ilha do Superagui. Segundo a gestora ambiental Marina Spindel, “várias comunidades tradicionais brasileiras têm seus territórios tomados por especulação imobiliária, grileiros e políticas ambientais que não promovem a justiça socioambiental”. Segundo Marina, as ações de um especulador nestes casos pode ser, inclusive, violenta. Um exemplo recente é a morte de um jovem de 23 anos no Parque Nacional da Serra de Bocaina, localizado na divisa entre os estados do Rio de Janeiro e São Paulo. “O jovem estava na propriedade da família quando foi abordado por invasores que ordenaram que eles deixassem a própria casa, pois o imóvel seria derrubado. Ao questionarem a falta de um mandado judicial, os criminosos agrediram o irmão da vítima com um tapa e dispararam contra ele”, relata Marina em seu site, do qual trata sobre as unidades de conservação no Brasil. 

Superagui não registra casos de violência física nesse sentido, muito

por conta da participação de representantes dos moradores. “A questão central é o empoderamento das comunidades. Nada é feito sem o aval da associação de moradores local. Não cabe a nenhuma unidade de conservação, mesmo as de uso sustentável, decidir se uma casa vai ser demolida e as pessoas que compraram as casas serão expulsas da ilha. É mais uma questão de autogestão que as próprias comunidades precisam ter para se fortalecerem”, ressalta Bresolin.

Preservar costumes e o modo de vida tradicional caiçara é a proposta apresentada pelo Instituto Chico Mendes. “Nosso principal foco é impedir que as pessoas de fora tirem as comunidades tradicionais de seus lugares. Tanto que na Barra do Superagui foram derrubadas quatro casas de veraneio, com ordem judicial, mas até hoje existem pessoas que vendem casas clandestinamente e isso é um problema para as comunidades tradicionais”, pondera a ex-chefe do Parque, Guadalupe Vivekananda.